Itapocu, 1964
Capítulo I
Estou trancado num quarto. Ele não me parece familiar, mesmo estando junto com meus outros três irmãos. Eles dormem. Eu escuto minha mãe alternando gargalhadas e gritos. As gargalhadas são sufocadas pelos gritos, parecendo que ela não quer nos amedrontar. Estou com medo. Não tem nenhum adulto para quem eu possa perguntar o que está acontecendo. Tampo meus ouvidos com as mãos para não ouvir mais os gritos de dor da minha mãe. O quarto escuro também me dá medo. Parece que fomos abandonados aqui. Mas esse pensamento se esvai porque os gritos de dor da mãe me asseguram que ela está ali. Meus pais vivem discutindo e minha mãe sempre chora. Eu não gosto de vê-la chorar. Mas ela nunca chorou assim tão alto e tão sofrido. Não sei se é de dia ou de noite. Meu pai, muito nervoso e bravo, me disse para eu cuidar dos meus irmãos e trancou a porta. Não ouço ele. Deve estar bebendo pinga. Ele bebe todos os dias. Minha mãe reclama. Eles brigam. Ultimamente tem sido assim. Minha mãe não está mais gritando de dor. Agora escuto o choro de um bebê. Acho que ganhei mais um irmãozinho.
Me lembro do dia em que eu e minha mãe fomos numa festa na igreja dos pretos. Minha mãe tem uma tia e um tio que são pretos. Ela nasceu em Itapocu, onde estamos morando. Pelo que eu entendi, minha avó, mãe da minha mãe, é filha adotiva da Dindinha Zila, minha bisavó. A Dindinha Zila é branca e, além da minha avó, também adotou outras duas crianças, que eram pretas. Na festa da igreja de Nossa Senhora do Rosário, os pretos se vestem de branco e usam na cabeça um arranjo de flores coloridas. Eles dançam no ritmo dos tambores e ficam dando voltas. Cada um segura uma espada de madeira nas mãos. Depois, eles fazem duas filas, e ficam um de frente pro outro, então começam a bater espadas, como se estivessem lutando. Era bonito!
Minha mãe me contou que a dança se chama Catumbi, e que tudo começou quando dois escravos começaram a pensar em fugir. Um deles tinha por costume ficar por perto da capela da fazenda aos domingos. Ele gostava de ouvir o sermão do padre, as rezas e cantorias. O outro ficava sempre recolhido na senzala. Um dia, os dois fugiram. Saíram correndo pelo mato adentro, e foram perseguidos pelos capitães do mato e seus cães farejadores. Já era noite quando eles chegaram às margens de um rio e ficaram com medo de tentar atravessá-lo, porque não sabiam se o rio era fundo, e também quão largo ele era, porque à noite não conseguiam enxergar a outra margem. Então o negro que conhecia os cultos religiosos se ajoelhou, e rezou pedindo por salvação. Prometeu à Nossa Senhora que se ele e seu amigo se salvassem, que até a sua morte ele a louvaria em danças e cantos. Uma luz muito forte iluminou seus perseguidores cegando-os. Os cães farejadores também ficaram cegos e pararam de farejar. Os capitães do mato e os demais que tentavam capturá-los, ficaram assustados e voltaram para a fazenda. A luz foi diminuindo e ficou apenas sobre os escravos. Quando eles abriram os olhos e olharam para cima, viram uma moça vestida com uma túnica vermelha e um manto azul, que pairava no ar. O preto que havia rezado perguntou: — Quem sois vós? A moça respondeu: — Eu sou a Senhora do Rosário. Vocês podem voltar para a fazenda, nada de mal lhes acontecerá. Os escravos voltaram e quando chegaram são e salvos à fazenda, todos os escravos homens com batuques e cantorias os acompanharam até o capataz. O senhorio da fazenda que já sabia do acontecido e impressionado pelos relatos, vendo a coragem dos dois escravos, que mesmo correndo o risco de serem castigados, haviam retornado, decidiu perdoá-los, e também autorizou que aos domingos todos os escravos assistissem à missa na frente da capela. Ao término da missa, os escravos homens tocavam seus tambores, chacoalhavam o cincerro – que tiravam do pescoço dos bois e cavalos -, e vestidos de branco, com flores na cabeça, dançavam calango e ratoeira, e entoavam cânticos. Depois, segurando espadas de madeira, encenavam uma luta, batendo as espadas no ritmo dos tambores e, em procissão, voltavam para a senzala. À frente deles, duas moças negras carregavam uma bandeira branca e uma coroa de espinhos. Todos almoçavam juntos, e o batuque e danças rolavam à solta até anoitecer. Perguntei para minha mãe: — Mãe, se tem um só Deus, por que aqui tem uma igreja dos brancos e outra dos pretos? Ela respondeu: — Outro dia eu te conto. Agora vai brincar lá fora.
Registro Histórico
O distrito de Itapocu integra o município de Araquari em divisão territorial datada de 1995. Itapocu é margeado ao norte pela BR-101 e ao sul pelo rio Itapocu, um dos principais afluentes da região, que é a junção do Rio Novo e Rio Humboldt.
Itapocu foi conhecida até o fim do século XIX como Porto do Sertão e constituía-se na época de 1854 num reduto de negros escravos e libertos, oriundos das regiões vizinhas e outras regiões do país, razão pela qual foi criada no povoado a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.